Na prática, o dispositivo serve para alertar governos estaduais, União e sociedade de que serviços públicos municipais serão afetados devido à crise financeira, mas não exime o gestor local da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
“Por meio desse decreto, o gestor está dizendo para a população que vai ter de cortar serviços, que não está conseguindo, com o orçamento, cumprir as obrigações que foram atribuídas (ao município) nos últimos anos”, diz o presidente da CNM, Glademir Aroldi.
O pedido de calamidade financeira é só a ponta de uma profunda crise enfrentada pelos municípios brasileiros. Desde a promulgação da Constituição, em 1988, as prefeituras passaram a assumir um papel maior na prestação de serviços públicos, sem que os orçamentos dessem conta das novas obrigações.
Isso porque a maioria das cidades não tem autonomia financeira. Um estudo conduzido pela pesquisadora Lorreine Messias evidencia bem esse quadro. Os principais tributos arrecadados pelas prefeituras – IPTU, ISS e ITBI (Imposto Predial Territorial Urbano, Imposto sobre Serviços e Imposto sobre a Transmissão de Bens Imóveis) – não são suficientes para equilibrar os orçamentos. E quanto menor o município, em geral pior a situação.
De acordo com o levantamento, nas cidades com até 5 mil habitantes a arrecadação desses três impostos representa apenas 2,26% da receita total. Numa faixa superior, entre 5 mil e 20 mil habitantes, a soma de IPTU, ISS e ITBI corresponde a 3,67% da receita.
Em geral, o quadro vai se atenuando conforme os municípios vão crescendo de tamanho. Entre as cidades com mais de 1 milhão de habitantes, por exemplo, a arrecadação dos três tributos chega a 26,86% da receita total.
“Mais da metade dos municípios possui população inferior a 20 mil habitantes e, nesses municípios, a gente nota que a receita própria não alcança 4% da arrecadação total. Ou seja, essas cidades têm hoje poucas condições de custear as suas despesas correntes”, diz Lorreine.
“O quadro só começa a melhorar quando a gente olha para municípios de maior porte, a partir dos médios e grandes, nos quais a receita própria assume uma posição entre 20% e 30% da receita total”, afirma.
Falência no Rio Grande do Norte
Em agosto do ano passado, o prefeito de Bento Fernandes (RN), Júnior Marques, tomou uma medida extrema: decretou a falência do município. Na cidade de 5,5 mil habitantes, os salários dos servidores ficaram atrasados e serviços básicos, como aulas nas escolas públicas, foram interrompidos. À época, Marques disse que a solução seria fechar a prefeitura.A situação de Bento Fernandes se complicou bastante, porque a cidade se enrolou com a Justiça. No passado, a administração municipal deixou de repassar as contribuições sociais descontadas dos salários dos servidores para o Fundo de Seguridade Social da Receita Federal.
Em junho de 2019, a Justiça determinou a execução do pagamento da dívida do município com o Fisco por meio de precatórios. A situação só começou a ser normalizada em outubro.
“A gente conseguiu superar esse problema porque os precatórios foram suspensos”, diz o prefeito de Bento Fernandes. “Se ainda estivesse do mesmo jeito, a cidade estava parada, sem sombra de dúvidas.”
Dependência de transferências
Com o aumento das despesas e uma baixa capacidade de arrecadação, as prefeituras se tornaram dependentes de transferências de outros entes, via Fundo de Participação de Municípios (FPM), por exemplo. Segundo a CMN, 60% dos municípios brasileiros dependem do fundo para custear sua estrutura.Em janeiro, no entanto, os repasses do FPM recuaram 8,96% na comparação com o mesmo mês de 2019. “Isso preocupa e preocupa muito. Nossa previsão é que, no primeiro trimestre deste ano, o repasse do FPM seja menor do que no primeiro trimestre do ano passado”, afirma Aroldi, da CNM.
Para os prefeitos, a queda do repasse do FPM se dá num cenário de bastante gravidade. Isso porque ela ocorre no momento em que há uma pressão adicional no gasto com o aumento de 12,84% no salário dos professores da educação básica. “Cada gestor do Brasil tem o maior respeito pelo profissional da área da educação”, afirma Aroldi. “Mas o momento fiscal do Brasil não tem espaço para um aumento de 12,84%, não só para a categoria dos profissionais da educação, mas para todas as categorias.”
As finanças dos municípios são bastante impactadas com reajustes salariais. Entre 2004 e 2018, houve um aumento de 52,5% na quantidade de servidores municipais, para 6,5 milhões.
Com um orçamento tão debilitado e dependente de repasses, os prefeitos têm adotado uma série de medidas, segundo a CMN:
- 3.488 municípios reduziram as despesas de custeio;
- 2.230 cidades estão com pagamentos de fornecedores atrasados;
- 1.988 prefeitos diminuíram cargos comissionados;
- 1.519 municípios desativaram os veículos.
Redução do número de municípios
Na tentativa de melhorar a situação fiscal de estados e municípios, a equipe econômica propôs a chamada Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do pacto federativo.Se aprovada, a medida tende a dar mais recursos e autonomia para estados e municípios, mas também propõe um redesenho das cidades. Aquelas que tiverem menos de 5 mil habitantes e arrecadação própria inferior a 10% da receita total serão incorporadas pelo município vizinho.
“Essa proposta me parece bastante curiosa do ponto de vista político e jurídico, podendo gerar atritos sociais e culturais, ou seja, bastante resistência. Me parece muito mais interessante repensarmos, revistarmos o sistema de transferência interfederativo”, afirma Lorreine.
Para Fabio Klein, da consultoria Tendências, a solução também passa pela reforma tributária, já que elevaria a importância dos serviços na arrecadação do país.
“A reforma traria uma mudança estrutural na composição do nosso sistema tributário e isso pode ser vantajoso para os municípios, uma vez que o ISS é (um tributo) municipal e tem alíquota de 5%, no máximo”, afirma Klein. “Quando falamos do IBS, um imposto sobre bens e serviços e que está sendo proposto, a alíquota poderia subir para 25%.” (G1)
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